PONTO DE VISTA: Virginia WoolfFonte: Revista VEJA


A escritora britânica Virginia Woolf, morta recentemente, não suportou ver outra guerra de perto - sua já instável condição psicológica se agravou mais ainda em meio aos bombardeios. Ela cometeu suicídio. Antes, registrou sua impressão sobre a guerra num diário, cujos trechos são publicados a seguir.

Entramos na guerra. A Inglaterra está sendo atacada. Tive esta sensação plena ontem pela primeira vez. A sensação de opressão, perigo, horror. Mais tarde os aviões começaram a zumbir. Explosões. Para a cama. Aviões muito próximos. A sensação é de que há uma batalha, uma batalha encarniçada. Pode se estender por quatro semanas. Estou com medo? Ora sim, ora não. Claro que este pode ser o começo da invasão. Uma sensação de opressão. Histórias sem fim deste lugar. Não, de nada serve tentar captar o sentimento que tenho pelo fato de a Inglaterra estar em guerra.

"A casa a uns 30
metros da nossa
foi atingida à 1 da
manhã por uma
bomba. Ela ficou
toda destruída."
Voltamos de Londres, onde passamos meio dia - talvez nossa visita mais estranha. A casa a uns 30 metros da nossa foi atingida à 1 da madrugada por uma bomba. Totalmente destruída. Outra bomba na praça não chegou a explodir. Pedaços de pano pendurados nas paredes nuas ainda de pé. Acho um espelho balançando. Como um dente arrancado a soco - um corte preciso. Nossa casa intacta. Um enorme buraco no alto de Chancery Lane. Fumegando ainda. Uma loja grande completamente destruída: o hotel em frente parecia uma concha. Em uma casa de vinhos não sobrara uma só vidraça. Pessoas de pé junto às mesas - acho que serviam bebida. Montes de vidro verde-azulado na rua. Homens despedaçando fragmentos que ficaram nos marcos. Vidros caindo. Depois a Lincolns Inn. Janelas quebradas, mas o prédio incólume. Entramos por ele. Desabitado. Corredores molhados. Vidro nas escadas. Portas fechadas. Então voltamos para o carro.

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Som sinistro - Um enorme congestionamento do tráfego. O cinema atrás de Madame Tussaud estraçalhado: o palco visível; um ornamento balançando no ar. Todas as casas de Regent's Park com janelas quebradas, mas intactas. Ruas vazias. Rostos rígidos e olhos turvos. O escritório de meus datilógrafos destruído. Depois, em Wimbledon, uma sirene: as pessoas se puseram a correr. Continuamos, por ruas quase desertas, acelerando o carro ao máximo. Cavalos desatrelados dos varais. Carros acostavam ao meio-fio. Depois o alerta de ataque aéreo. As pessoas em que penso agora são os donos das pensões imundas, que vão enfrentar outra noite; velhas desventuradas à porta de suas casas, sujas, miseráveis. Achei que fui covarde ao sugerir que não dormíssemos duas noites no mesmo lugar. Senti um grande alívio quando telefonaram aconselhando-nos a não ficar.

"De vez em quando
há um baque surdo.
As janelas tremem.
Assim sabemos que
Londres volta a ser
atacada por eles."
Churchill diz que a invasão está sendo preparada. Se ocorrer, será indubitavelmente nas próximas duas semanas. Navios e barcaças concentram-se nos portos franceses. O bombardeio de Londres é sem dúvida uma preparação para a invasão - o que me comove, porque acho Londres majestosa. Um avião derrubado diante de nossos olhos pouco antes do chá: sobre o hipódromo, um embate, uma guinada, em seguida um mergulho e uma explosão de espessa fumaça negra. Contamos agora com um ataque aéreo por volta das 8h30. Em todo caso, se houver ou não, é mais ou menos a esta hora que ouvimos o sinistro som de serra, que fica muito forte e some; depois um intervalo; depois ouvimos outro. "Lá vêm eles", dizemos. De vez em quando há um baque surdo. As janelas estremecem. Assim sabemos que Londres volta a ser atacada.
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Só ruínas - Deveria pensar na morte? À noite houve uma terrível e violenta precipitação de bombas sob a janela. Tão próximas que nos sobressaltamos. Um avião passara despejando estes frutos. Corremos ao terraço. Penduricalhos estelares salpicados e coruscantes. Quietude. As bombas caíram sobre Itford Hill. Duas delas perto do rio, indicadas por duas cruzes brancas de madeira, ainda por explodir. Eu disse: não quero morrer ainda. As probabilidades são adversas para isso. Mas eles estão almejando a ferrovia e as centrais elétricas. A cada vez chegam mais perto. Oh, tento imaginar como é morrer por uma bomba. Tenho-a relativamente viva, a sensação. Mas não sou capaz de ver outra coisa além de uma inexistência asfixiante. A compressão e o esmagamento, a trituração de meus ossos sobre meus olhos e meu cérebro laboriosos. O apagar das luzes. Doloroso? Sim. Apavorante? Presumo que sim. Depois delíquio, zumbido, dois ou três estertores atrás da consciência - e depois, ponto ponto ponto.

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A mais - o quê? Impressionante? Não, não é isto - cena em Londres foi a fila, na maior parte de crianças com malas, em frente à estação de metrô de Warren Street. Pensamos que tinham sido evacuados. Mas ainda estavam lá, numa fila bem mais comprida, com mulheres, homens, mais malas e cobertores, sentadas, imóveis, às três horas. Faziam fila para entrar no abrigo no ataque aéreo à noite. Dali para Tavistock Square. Um monte de destroços. Três casas destruídas. Vi uma parte da parede de meu estúdio ainda de pé – no mais, só entulho onde escrevi tantos livros. Ar livre onde nos sentamos tantas noites, demos tantas festas. Dali para Mecklenburgh Square. Também só ruínas, vidros, poeira preta e fofa, pó de reboco. É horrível... Livros espalhados pelo chão da sala de jantar. Na sala de estar vidros espalhados pelo armário e assim por diante. Só na sala de visitas as janelas ficaram quase inteiras. Um vento soprando. Comecei a procurar diários. O que podíamos resgatar com este carrinho? Darwin, e a prataria, e alguns copos e louças. Fico satisfeita por ter perdido bens - a não ser quando quero livros e cadeiras e tapetes. Trabalhei tanto para comprá-los, um a um. E os quadros. Mas gostaria de começar a vida, em paz, quase destituída - livre para ir a qualquer parte. Virginia Woolf, romancista, ensaísta e crítica literária, morreu no fim de março, afogada num rio próximo à sua casa em Rodmell. Autora de Flush - Memórias de um Cão, Mrs. Dalloway, Orlando, As Ondas e O Vestido Novo, ela tinha 59 anos.