US$ 700 milhões
Concorrência milionária mobiliza as maiores indústrias de aviação do mundo para renovar a frota de jatos da FAB

Fonte: Isto É

Eduardo Hollanda, Hélio Contreiras e Luiz Antonio Cintra

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O modelo 2000, do consórcio Embraer/Dassault, é forte candidato

O comando da Aeronáutica recebe até terça-feira 16 as últimas propostas para a maior concorrência pública em andamento no País: a compra de até 24 jatos supersônicos que serão usados pela Força Aérea Brasileira (FAB) nos próximos 30 anos – um negócio de US$ 700 milhões que mobiliza ministros e chefes de Estado, as maiores indústrias do setor no mundo, lobistas da pesada e um batalhão de técnicos. A entrega foi adiada para 16 de outubro em razão dos atentados terroristas que atingiram os Estados Unidos e complicaram a vida dos executivos da americana Lockheed Martin, uma das candidatas a levar a parada. A francesa Dassault, sócia e parceira da Embraer na concorrência, e os aviões russos Sukhoi são, ao lado da Lockheed, os candidatos com maiores chances de ganhar. O consórcio da sueca Saab e a britânica British Aerospace, fabricantes do modelo Gripen, corre por fora, assim como os italianos da Alenia e os russos da Mig. A Boeing, que participaria com o avião F-18, desistiu, aparentemente porque o jato, de US$ 70 milhões, seria caro demais para o orçamento brasileiro. Mas pechincha, nessa história, não existe: o jato vencedor deverá custar aos cofres públicos entre US$ 30 milhões e US$ 40 milhões.

Renato Velasco
Comprados nos anos 70, os caças F-5 ficaram sem condições de vôo

A decisão final sairá no início de 2002. Ao todo, 110 aviões serão comprados ou reformados em oito anos pela Aeronáutica. O pacote completo de reaparelhamento da FAB, incluindo o custo de recuperação e de construção de bases militares, treinamento e reforma de aeronaves, será de US$ 2,7 bilhões. A escolha levará em conta não apenas aspectos técnicos e o preço de cada um dos modelos candidatos, inclusive porque a decisão final será do Conselho de Defesa Nacional, ligado à Presidência da República, e não da Aeronáutica. Além do presidente FHC e do vice, Marco Maciel, fazem parte do conselho os presidentes da Câmara e do Senado, os ministros da Justiça, Defesa, Relações Exteriores, Planejamento e os comandantes do Exército, Aeronáutica e Marinha. Laços políticos, diplomáticos, interesses estratégicos do País, transferência de tecnologia e geração de empregos deverão ser fatores decisivos. A garantia de reposição de peças, o acesso aos softwares responsáveis pelo comando dos aviões também, assim como a contrapartida comercial, ou seja, o país vencedor terá de se comprometer a importar produtos brasileiros no mesmo valor. As exigências, ao menos no papel, são essas.

Leopoldo Silva/AFP
O brigadeiro Santos e a mulher do vice americano, Lynne Cheney

A lembrança do caso Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), de 1995, quando na última hora e por pressão americana o governo brasileiro decidiu mudar as regras do jogo, deveria ser suficiente para deixar a opinião pública de orelha em pé. Último grande lance do xadrez que envolve o sistema de defesa nacional, a americana Raytheon levou o Sivam por oferecer melhores condições de financiamento que os franceses da Thomson. O “custo invisível” para o País, dizem os especialistas, foi a dependência do know-how dos EUA. O que explica o fato de técnicos americanos participarem até hoje da sala de comando dos radares que vigiam a Amazônia. Dessa vez, o governo garante que nem cogita abrir mão da licitação. “O Sivam levou à saída do então ministro da Aeronáutica, Mauro Gandra, e nos deixou prevenidos. Não queremos dar margens a contestações jurídicas, muito menos a escândalos”, diz o brigadeiro Reginaldo Santos, chefe da diretoria de pesquisa e desenvolvimento da Aeronáutica. Denunciado por ISTOÉ, o caso Sivam envolveu tráfico de influência e lobby na cúpula do governo federal.

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F-16 Produzido pela americana Lockheed, conta com o lobby do governo Bush

Para quem defende outras prioridades para o País, é bom que se diga que a oposição fechou com o Planalto. A frota de jatos supersônicos que a Aeronáutica possui – os franceses Mirage III e os americanos F-5 – foi comprada no início da década de 70 e será aposentada até 2005. Quase todos estão parados e alguns serão recuperados, assim como os caças subsônicos A-1, resultado do projeto ítalo-brasileiro AMX da década de 80. Daí a necessidade de o governo brasileiro abrir o bolso e, depois de adiar por vários anos, finalmente renovar a frota. Para que servirão? Principalmente para interceptar aviões desconhecidos que estejam sobrevoando o espaço aéreo nacional e os abater em caso de ataque. Trabalho não vai faltar a essa tropa. Foram quase seis mil aviões detectados somente neste ano pelos radares brasileiros e não foram abordados por conta do sucateamento dos jatos da Aeronáutica, de acordo com o deputado federal Paulo Delgado (PT-MG). Membro da Comissão de Defesa da Câmara, Delgado encaminhou ao governo um texto defendendo que o negócio saia por meio de uma compra direta e não por concorrência. “Enviei o indicativo para que o governo saiba que não terá problemas com a oposição caso decida pela compra direta”, diz ele.

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O modelo sueco-britânico tem a menor autonomia de vôo

Lobby – Longe dos holofotes, o lobby para ganhar a concorrência é intenso. Ao menos dois primeiros-ministros – Tony Blair, da Inglaterra, e Lionel Jospin, da França – trataram do assunto pessoalmente com FHC. Os americanos não devem deixar por menos. A relação do presidente Bush com a Lockheed, fabricante do F-16, vai além da tradicional ligação que os presidentes dos EUA têm com a indústria bélica. Lynne Cheney, mulher do vice de Bush, Dick Cheney, foi durante anos diretora da Lockheed e deixou o cargo somente em janeiro. O secretário-assistente de Estado indicado por Bush para ocupar o principal cargo da diplomacia americana em assuntos latino-americanos é Otto Reich, responsável pelo bem-sucedido lobby dos F-16 para o Chile no ano passado.

Na concorrência brasileira, a proposta americana enfrenta resistência de setores das Forças Armadas e no Congresso, justamente porque os americanos preferem manter em sigilo a tecnologia que utilizam – no caso dos inúmeros softwares usados nos jatos, recusam-se a abrir o chamado código-fonte. Em uma operação que vá contra os interesses dos EUA, equipamentos poderiam ser desativados pelo fabricante. Outro problema são as restrições impostas pelo Congresso americano para liberar os armamentos que acompanham os jatos. O Chile ainda aguarda a liberação dos mísseis usados pelos F-16 para saber se ficará com os aviões americanos.

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Sukhoi O jato russo, modelo Su-30, poderá ser a grande surpresa

A francesa Dassault, sócia da Embraer, aparece como a candidata mais forte até aqui, com a proposta de montar o Mirage 2000 no Brasil. Ao contrário dos americanos, se compromete a transferir tecnologia, a gerar empregos na unidade de Gavião Peixoto da Embraer e não tem restrições para a venda de armamentos. O ponto fraco é o custo de manutenção e de peças de reposição dos Mirage, bem mais salgado que o dos americanos. O lobby dos franceses tem dado resultado. O ministro José Serra, apesar de não estar diretamente ligado ao assunto, chegou a se manifestar a favor do consórcio Dassault-Embraer. Parlamentares à esquerda e à direita também não escondem a preferência pela presença de uma indústria nacional no projeto. Mas terão de dobrar militares ressentidos com a ex-estatal de aviação. Consideram que os novos donos da Embraer esnobaram o passado da empresa e os resultados recentes teriam sido creditados apenas à iniciativa privada. Poderiam agora dar o troco. Alguns especialistas dizem que a parceria da Dassault coloca o governo em uma sinuca. Como a transferência de tecnologia é um dos itens de maior peso na concorrência e apenas a Embraer teria capacidade técnica para adquirir o conhecimento e fazer uso dele, as demais concorrentes sairiam em desvantagem.

A surpresa poderá vir da Rússia, dos aviões Sukhoi, modelo preferido dos pilotos. Como os franceses, estariam dispostos a transferir tecnologia e se disporiam a trazer uma linha de montagem para o País, usando instalações da Varig, comenta-se em gabinetes militares. Garantiriam a contrapartida fechando uma compra grande de commodities brasileiras. O maior entrave: a instabilidade política do país.

Terrorismo – A compra dos modelos Gripen teria de ser acompanhada da construção de novas bases militares, já que os aviões possuem pouca autonomia de vôo. Além disso, o consórcio sueco-britânico também faz restrições à transferência de tecnologia e à venda de armamentos.

O efeito dos atentados nos EUA e da ofensiva antiterror sobre a operação de compra dos jatos da FAB é algo ainda difícil de ser qualificado, dizem os especialistas. O Congresso americano ficará ainda mais avesso à venda de armamentos a países considerados instáveis politicamente? Ou o lobby da indústria bélica ganhará terreno e os EUA seguirão a marcha no sentido de abrandar as restrições?

De modo geral, quem acompanha os meandros da política internacional considera que ainda é cedo para conclusões definitivas. E há quem defenda que, justamente por isso, o melhor seria a Aeronáutica aguardar um pouco mais. “Preocupa-me muito que as aquisições da Aeronáutica não correspondam a um projeto alinhado com a política de defesa do País, que ainda está sendo formulada”, diz o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Domício Proença Jr. “O importante agora é o governo compartilhar as opções disponíveis e os critérios da escolha”, avalia.

É bom lembrar que, quando o assunto é segurança nacional, exigir o máximo de transparência nunca é demais.