"Mãe" Rússia renasce das cinzas como uma Fênix

O ressurgimento da grande potência

Mario Cesar Flores é almirante-de-esquadra (reformado)

Fonte: Estadão

Superado o clímax preocupante do recente "caso" da Geórgia, é hora de procurar entendê-lo em sua integralidade. Independentemente do grau de vinculação étnica e cultural com a Rússia, o que realmente pesou nele foi o fato de estar a Geórgia em área de influência inequívoca russa, a retomada pela Rússia da condição de grande potência e ser a Geórgia parte integrante da geopolítica da energia de interesse ocidental. Desenvolvamos esse complexo interativo.

Para chegar ao consumo no Ocidente (Europa) o petróleo da bacia do Mar Cáspio, produzido em ex-Repúblicas soviéticas, tem de contornar aquele mar via Rússia ou (o petróleo produzido a leste do Cáspio) atravessá-lo e passar pela Rússia (inclusive pela Chechênia...) ou por países do Cáucaso (Azerbaijão, Geórgia e Turquia - esta, embora não caucasiana, chega à cordilheira), até o Mar Negro; na alternativa turca, ainda não efetivada, até o Mediterrâneo. Para o sul, alternativa tampouco efetivada, através do problemático Irã até o Golfo Pérsico, seguindo por mar para a Europa.

Quanto ao gás produzido em território russo, para chegar à Europa ele passa pela Ucrânia, hoje uma incógnita sociopolítica que a Rússia vê em sua esfera de influência (histórica e como ex-República soviética), mas está psicopoliticamente dividida entre pró-Ocidente e pró-Rússia. No episódio Geórgia, manteve-se obscuro, talvez em decorrência dessa ambigüidade, o papel potencial da Ucrânia, de extenso litoral no Mar Negro e que apóia, desde o fim da URSS, a esquadra russa nesse mar; mais dia, menos dia, a ambigüidade será dirimida e é improvável que possa sê-lo em detrimento da Rússia.

Esse cenário complicado afeta um grande objetivo de segurança ocidental: o controle das fontes e do escoamento dos hidrocarbonetos. No tocante à procedência "Ásia Central/Cáspio-Cáucaso", a União Européia é particularmente interessada, mas a magnitude desse interesse não é amparada em correspondente capacidade de - e disposição para - defendê-lo, dependente da difícil institucionalização de políticas comuns, externa e de defesa. Resultado: na sua condição de superpotência global que tem na União Européia (UE) sua grande sócia, os EUA se vêem envolvidos nesse encargo, em continuidade ao seu papel hegemônico de defesa da Europa Ocidental na guerra fria (cresce na OTAN a preocupação com o leste não-russo, com o Oriente Médio e contingentes militares europeus estão no Afeganistão, mas sem muito entusiasmo...). Evidentemente, essa situação, crítica no quadro da energia na UE, sugere convir ao Ocidente a Geórgia e a Ucrânia ocidentalizadas, o que para a Rússia é inaceitável e sua disposição a respeito, coerente com sua condição proeminente na região, ficou demonstrada no caso Ossétia do Sul e pode ser resumida nesta idéia: a Geórgia está no meu (russo) espaço geopolítico e nele decido eu... Essa atitude, realisticamente compreensível, já havia sido deixada clara na oposição russa ao ingresso da Geórgia e da Ucrânia na OTAN.

A retomada do preparo militar russo, que viveu um período de marcha lenta, quase parando, mas nunca foi totalmente descartada, insere-se nesse quadro de realce regional, claramente reativado no governo Putin. A Rússia está consciente de que, com o ocaso do messianismo ideológico global soviético, não há motivo para construir um caro poder militar convencional de superpotência global onipresente, mas há que construí-lo compatível com sua condição de grande potência relevante em seu entorno geopolítico, decisiva quando os assuntos afetarem seus interesses importantes. Tal perspectiva é sintomaticamente refletida no repreparo da Marinha russa, em que não é tranqüila a retomada do programa de porta-aviões, útil para intervenções transoceânicas (aparentemente, fora do escopo russo, ao menos por ora), mas de validade duvidosa (se tanto) numa hoje improvável disputa com a Marinha norte-americana pelo controle de grandes extensões oceânicas. E toda essa estratégia de grande potência hegemônica fundamentalmente regional se desenvolve à sombra da invulnerabilidade direta da Rússia no cenário global, propiciada por seu poder nuclear, que será mantido no nível adequado a esse propósito.

Em suma, poder nuclear à parte, o repreparo militar russo está sendo basicamente pautado pelas injunções da condição de grande potência hegemônica em seu entorno geopolítico eurasiático. Realçam no repreparo as forças para operações ao estilo Blitzkrieg, que corroborem tal condição criando rapidamente fatos consumados decisivos, do tipo Geórgia, coerentes com os objetivos russos entendidos como importantes naquele entorno, onde, cabe lembrar, a influência política e estratégica da Rússia é histórica, precedeu o regime comunista soviético, Putin não a inventou... Essa herança de influência tradicional, no mínimo, complica - se não inibe - qualquer ação ocidental passível de ser considerada francamente hostil à Rússia: houve alguma compreensão para a determinação russa na Geórgia, mas teria sido improvável compreensão similar para uma reação militar mais assertiva (portanto, de alto risco) norte-americana e/ou européia.

Em contrapartida, não se deve esperar, no horizonte de tempo imaginável, que a Rússia se engaje decisivamente longe de sua esfera de influência direta na Eurásia - o que nos leva a conjeturar ser o exercício naval Rússia-Venezuela no Caribe mera manifestação do circo venezuelano "antiimpério", com o qual a Rússia concorda por lhe convir agradar a seu freguês de bilhões de dólares de material militar, ao mesmo tempo que dá um "troco" simbólico ao apoio norte-americano à Geórgia.

Nessas circunstâncias, será melhor para a tranqüilidade energética da Europa a composição com a Rússia ou convém insistir na ocidentalização dos países da área de influência russa envolvidos na equação da energia "Ásia Central-Europa"?