Ao terminar a Segunda Guerra Mundial, os festejos de paz foram logo substituídos pelo clima de tensão internacional e pelo medo crescente de um novo conflito mundial, envolvendo, dessa vez, dois poderosos inimigos, os Estados Unidos e a União Soviética.
O Lucky Lady II, primeiro avião a dar a volta ao mundo sem escalas
A tensão chegou a um ponto crítico quando, em junho de 1948, a União Soviética bloqueou o acesso terrestre a Berlim Ocidental, que ficaria totalmente isolada se não fosse a Ponte Aérea implantada pelos americanos para abastecer a cidade (ver artigo sobre o assunto nesse blog: http://culturaaeronautica.blogspot.com/2010/05/tempelhof-o-fim-do-aeroporto-que-salvou.html).

A recém criada Força Aérea dos Estados Unidos (USAF) era, então, o mais poderoso instrumento de dissuasão contra os soviéticos, pois dispunha de armamento nuclear.
O Boeing B-50A Lucky Lady II
Entretanto, era necessário provar aos soviéticos que os Estados Unidos poderiam alcançar qualquer lugar da União Soviética, e do mundo, com os seus bombardeiros nucleares. Até então, essa possibilidade era factível, mas meramente teórica, pois nunca tinha sido demonstrada.
O General Curtis LeMay
O General Curtis E. LeMay assumiu o Comando Aéreo Estratégico (SAC) em, outubro de 1948. LeMay e o General Hoyt Vandenberg, Chefe do Estado Maior da Força Aérea, a pedido do Secretário do Ar W. Stuart Symington, planejaram uma espetacular demonstração de que os obstáculos geográficos e a distância já não poderiam garantir segurança aos soviéticos contra um possível ataque aéreo americano.

LeMay e Vandenberg finalmente decidiram que uma volta ao mundo de uma aeronave militar, sem escalas para reabastecimento, seria uma demonstração de poder suficiente para desencorajar eventuais planos de expansão soviéticos.
A rota percorrida pelo Lucky Lady II
Era um grande desafio: o avião que realizasse a missão deveria fazer vários reabastecimentos em voo, levar pelo menos duas tripulações e suprimentos para uma viagem tão longa, como alimentos e óleo lubrificante extra para os motores.

O bombardeiro de maior raio de ação então em serviço na USAF era o Boeing B-50, um desenvolvimento dos antigos B-29 da Segunda Guerra Mundial, equipado com quatro poderosos motores Pratt & Whitney R4360 de 28 cilindros e 3.500 HP cada um, e que podia levar uma grande capacidade de combustível, pois podia ser equipado com tanques subalares e tanques extras nos compartimentos de bombas.
Motor Pratt & Whitney R-4360, do B-50
Embora o B-50 fosse um bom avião, seus motores (foto acima) tinham fama de serem "temperamentais e, ocasionalmente, pirotécnicos"... A falha ou o fogo no(s) motor(es) seriam riscos que teriam que correr.

O outro problema era o reabastecimento: o único sistema disponível de reabastecimento no ar, à epoca, era o probe-and-drogue, que consiste em uma mangueira de reabastecimento, estabilizada por uma espécie de "cesto" e rebocada pelo avião-tanque (foto abaixo). O avião receptor deveria voar em formação com o avião tanque e encaixar uma sonda no centro do "cesto", onde válvulas liberavam o fluxo de combustível do avião-tanque para o avião receptor. Não havia bombas, o combustível fluía por gravidade.
Sistema "probe-and-drogue"
O sistema era confiável, mas exigia boa habilidade do piloto do avião receptor, e qualquer reabastecimento noturno estava totalmente fora de questão, por questões de segurança.

Três aeronaves B-50A foram designadas para a missão. O B-50A Global Queen, comandado pelo Tenente Jewell, foi escolhido como aeronave primária para a volta ao mundo. Os B-50A Lucky Lady II e Lone Ranger foram escalados como aeronaves reserva.
Avião-tanque Boeing KB-29M
Quatro pares de aviões tanques Boeing KB-29M (foto acima) foram despachados para Lajes, nos Açores, Dhahram, na Arábia Saudita, Clark Field nas Filipinas e Rogers Field, no Havaí. As missões de reabastecimento foram espaçadas de modo que ocorressem sempre pela manhã de cada dia.
Os pilotos do Lucky Lady II, durante a missão
No dia 25 de fevereiro de 1949, o B-50A Global Queen levantou voo de Carswell AFB, em Fort Worth, no Texas. Os motores R4360 do avião fizeram jus à sua fama de "pirotécnicos", no entanto: um incêndio de motor fez o Global Queen abortar a sua missão em Lajes, nos Açores, onde pousou na manhã de 26 de fevereiro.

O primeiro reserva, o Lucky Lady II, com sua tripulação de prontidão, foi ativado e decolou às 12 horas e 21 minutos de Carswell. Sua tripulação era composta dos seguintes membros:

Capitão James G. Gallagher, comandante da aeronave e da missão;
Primeiro tenente Arthur M. Neal, copiloto;
Capitão James H. Morris, copiloto;
Capitão Glenn E. Hacker, navegador;
Primeiro-Tenente Earl Rigor, navegador;
Primeiro-Tenente Ronald B. Bonner, operador de radar;
Primeiro-Tenente William F. Caffrey, operador de radar;
Capitão David B. Parmalee, engenheiro chefe de tripulação; Terceiro-Sargento Virgil L. Young, engenheiro de vôo;
Segundo-Sargento Robert G. Davis, engenheiro de vôo;
Terceiro-Sargento Burgess C. Cantrell, engenheiro de rádio;
Segundo-Sargento Robert R. McLeroy, engenheiro de rádio;
Terceiro-Sargento Melvin G. Davis, armas e reabastecimento;
Segundo-Sargento Donald G. Traugh Jr., armas e reabastecimento;

Todos os tripulantes, com exceção do Capitão Parmalee, pertenciam ao 63º Esquadrão de Bombardeio, 43º Grupo de Bombardeio.
Cumprimentos pela missão
O Lucky Lady II cumpriu toda a missão com absoluto sucesso, sem maiores problemas técnicos. Após decolar de Carswell, voou por 20379 milhas náuticas (37.742 Km) durante 3 dias, 22 horas e 1 minuto, mantendo uma média de velocidade de 216 Knots GS (Ground Speed), até pousar novamente em Carswell, às 10 horas e 31 minutos de 02 de março de 1949, dois minutos antes do tempo estimado pelos navegadores antes da decolagem da missão.
O Lucky Lady II retorna a Carswell
O voo foi feito em uma altitude entre 10 e 20 mil pés, em todo o seu percurso. Poucos problemas meteorológicos perturbaram a missão.

Uma tragédia, no entanto, marcou a viagem: um dos aviões-tanques KB-29M, ao retornar para Clark Field, nas Filipinas, caiu, matando o comandante Fuller e toda a sua tripulação.

Mantendo uma estafante escala de quatro ou seis horas de trabalho para menos de 6 horas de descanso, não é de se admirar que os tripulantes tenham chegado ao fim da sua missão consideravelmente cansados.
A tripulação recebe os cumprimentos pela missão bem sucedida
Os tripulantes foram festivamente recepcionados, em seu regresso, pelo Secretário Symington e pelos Generais LeMay, Vanderberg e o Major-General George P. Ramey, Comandante Geral da Oitava Força Aérea.

LeMay considerou a missão como uma indicação de que a USAF já tinha a capacidade de decolar, em missões de bombardeio, de qualquer lugar nos Estados Unidos, para "qualquer lugar no mundo que exigisse a utilização da bomba atômica". Ele declarou, ainda, que o reabastecimento no ar também poderia ser usado para os aviões de caça. Por sua vez, Symington observou que reabastecimento aéreo iria "transformar bombardeiros médios em bombardeiros intercontinentais".
A fuselagem preservada do Lucky Lady II
Todos os tripulantes do avião foram condecorados com a Distinguished Flying Cross, e mais tarde receberam também o Troféu Mackay, um prêmio anual concedido ao "voo mais relevante do ano", além de outras condecorações e prêmios.
Estado atual do Lucky Lady II
O B-50A-5BO Lucky Lady II era equipado com 12 metralhadoras calibre .50, além de um tanque de combustível adicional acrescentado no compartimento de bombas, para fornecer autonomia adicional. Seu Serial Number era 46-0010. Infelizmente, o avião sofreu um acidente com perda total, pouco tempo depois do seu voo ao redor do mundo. Sua fuselagem foi parcialmente restaurada, e atualmente encontra-se preservada e em exibição no Museu Planes of Fame, em Chino, Califórnia.

Apenas cinco bombardeiros Boeing B-50 ainda existem, e nenhum deles pode mais voar.
A fuselagem do Lucky Lady II, em Chino
O Lucky Lady II foi apenas um de três aviões de nome semelhante, todos ligados às circunavegações da Terra:

O Lucky Lady original foi um dos dois B-29 Superfortress que fizeram uma viagem de volta ao mundo entre julho e agosto de 1948, voando de volta para Davis-Monthan AFB, no Arizona, completando 17.400 Milhas Náuticas (32.000 km) de vôo em 15 dias depois de fazer oito paradas ao longo do caminho, com 103 horas e 50 minutos de voo.


O Lucky Lady III foi um dos três B-52 Stratofortress (foto abaixo) que fizeram uma circunavegação em janeiro de 1957, como parte da Operação Power Flite, voando de Castle AFB, na Califórnia, e completando a 21.138 milhas náuticas (39.147 km) de vôo em 45 horas e 19 minutos, a 466 Knots GS (863 km/h) com a assistência de aviões-tanques Boeing KC-97 Stratotankers.
Os B-52 da missão Power Flite, em janeiro de 1957
Pouco mais de oito anos depois, o B-52 Luck Lady III fez a viagem ao redor do mundo em menos de metade do tempo exigido pelo Lucky Lady II.

Quanto aos efeitos estratégicos, o sucesso da missão não pôde ser avaliado com certeza. Os soviéticos suspenderam o bloqueio de Berlim em setembro de 1949, mas a explosão da primeira bomba nuclear russa, em agosto do mesmo ano, ofuscou inteiramente a grande façanha do Lucky Lady II, ao menos do ponto de vista puramente militar.

Fonte: Cultura Aeronautica