O governo brasileiro confessa que foi surpreendido pela decisão da Força Aérea dos Estados Unidos de suspender a compra de 20 aviões Super Tucano da Embraer e considera a medida um retrocesso para a relação entre os dois países na área de defesa. É o que diz nota do Ministério das Relações Exteriores, divulgada na semana passada, dois dia após o anúncio dos dirigentes norte-americanos.

“O governo brasileiro recebeu com surpresa a notícia da suspensão do processo licitatório de compra de aviões A-29 Super Tucano pela Força Aérea dos Estados Unidos, em especial pela forma e pelo momento em que se deu. Considera que esse desdobramento não contribui para o aprofundamento das relações entre os dois países em matéria de defesa.”

A venda do Super Tucano para o governo dos EUA era vista como estratégica pela Embraer para ampliar as receitas do seu braço de defesa e segurança, que responde hoje por cerca de 14% do seu faturamento líquido. A “vitrine” americana poderia abrir espaço para negócios com outros países, como os da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Anunciado na terça-feira, o cancelamento da concorrência pegou de surpresa a diretoria da empresa, que havia vencido a concorrência e contava com a possibilidade de ampliação das encomendas, de 20 para até 55 unidades do jato — o que levaria a operação de US$ 335 milhões para cerca de US$ 900 milhões.

Por enquanto é improvável que a empresa leve o caso a alguma corte internacional. O caminho mais natural, segundo pessoas próximas à Embraer, será pressionar o governo brasileiro a entrar na briga e cobrar uma explicação da administração Obama. Procurada, a companhia disse que não faria novos comentários além do que foi informado em nota distribuída na própria terça-feira, na qual disse “lamentar” o cancelamento e que aguardaria os desdobramentos do caso para decidir “os próximos passos. A Embraer participou do referido processo de seleção disponibilizando, sem exceção e no prazo próprio, toda a documentação requerida.”

A empresa disse ainda acreditar que a decisão pelo Super Tucano “foi uma escolha pelo melhor produto, com desempenho em ação já comprovado e capaz de atender com maior eficiência às demandas apresentadas pelo cliente”. O contrato estava suspenso desde o dia 4 de janeiro (cinco dias depois de ter sido anunciado oficialmente).

Desenvolvido para treinamento e operações chamadas de ataque leve, o Super Tucano já é usado em oito países. Além do Brasil (com 99 unidades), está na Colômbia, Chile, República Dominicana, Equador e Indonésia. A Embraer afirma que outros três países da África também equipam suas tropas com o aparelho, mas, por condições contratuais, não pode revelar seus nomes.

O caça é a ponta mais visível do projeto de ampliação das atividades da Embraer no segmento de defesa e segurança. Em parceria com a FAB, a empresa também desenvolve o projeto de um cargueiro militar. O KC-390, como foi batizado, já recebeu cartas de intenções para compra de 60 unidades, sendo 28 da FAB e o restante dos governos da República Checa, Portugal, Argentina, Chile e Colômbia.

Especialista no setor aeronáutico, o economista Marcos Barbieri, da Unicamp, concorda que a venda do Super Tucano à Força Aérea dos EUA serviria de “atalho” para novos mercados, mas acredita que o foco principal da Embraer continua sendo o mercado interno. O sistema de defesa do Brasil prevê dois investimentos para os próximos anos: o Sisfron, que fornecerá sistemas de monitoramento das fronteiras pelo Exército, e o Sisgás, que vai atuar no controle da região do pré-sal. A Embraer terá participação decisiva nestes projetos, fornecendo aviões, radares e satélites. “A nossa estrutura de defesa tem de ser compatível com o novo papel geopolítico desempenhado pelo País”, afirmou Barbieri.

Em janeiro passado, a Embraer divulgou suas projeções para 2012. A empresa prevê receita líquida total entre US$ 5,8 bilhões e US$ 6,2 bilhões, com a entrega de 195 a 215 aviões nos segmentos comercial, executivo e de defesa (contra 204 em 2010). Da receita líquida, entre 14,5% e 16% deverão vir do braço de defesa e segurança, dependendo do cenário escolhido. A área começou a ganhar corpo na última década. De 6% do faturamento em 2006, deve chegar a 14% em 2011 (os números oficiais ainda não foram divulgados; até o primeiro semestre, tinha uma fatia de 11%), 20% em 2015 e 25% no final da década, de acordo com estimativas do mercado e da própria companhia.



Questão virou discurso eleitoral

Uma agressiva campanha de “lobby”, tanto de parlamentares quanto de pré-candidatos à presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano, precedeu a decisão da Força Aérea norte-americana de cancelar o contrato para a compra de 20 Super Tucano da Embraer. Em uma campanha eleitoral centrada na crise econômica e na necessidade de geração de empregos no país, a Embraer virou alvo direto dos republicanos.

O ex-presidente da Câmara Newt Gingrich, um dos quatro pré-candidatos que disputam a indicação republicana, tornou o ataque ao negócio com a Embraer uma parte importante do seu discurso, repetido em cada um dos estados onde pede votos. “Queremos que o presidente dos EUA viaje pelo mundo para vender produtos e serviços americanos, não para comprar. Pegar dinheiro emprestado dos chineses para pagar aos brasileiros é um modelo que não funciona”, disse Gingrich em New Hampshire em janeiro.

Citando o fato de a Embraer ter vencido a concorrência, Gingrich foi direto. “Por que não uma empresa americana?” A condenação ao “outsorcing” (delegar serviços a terceiros) virou um mantra na campanha. Em Michigan, o ex-senador Rick Santorum se apresenta sempre com uma faixa com os dizeres: Made in America. Na TV, sua campanha destacou os planos para a reindustrialização dos EUA, por meio de corte de impostos sobre a indústria. Ele atacou o rival Mitt Romney por ter ficado contra o resgate da indústria automobilística de Detroit, em 2009. Santorum também se opôs ao socorro à GM e à Chrysler, mas alega que sua posição é ideológica, contra o uso de dinheiro público em empresas privadas, enquanto Romney apoiou a ajuda aos bancos, mas não às montadoras.

Comandante da Usaf critica decisão

O comandante da Força Aérea dos EUA, general Norton Schwartz, criticou duramente a decisão do governo norte-americano de cancelar o contrato para compra de 20 aviões Super Tucano da Embraer depois de a companhia brasileira, em parceria com a Sierra Nevada, ter vencido a licitação para o fornecimento de aerovanes de vigilância, que seriam usadas no Afeganistão. Schwartz admitiu que o cancelamento representa um embaraço para a Força Aérea dos EUA e acrescentou estar “profundamente desapontado”.

A licitação foi contestada por uma empresa norte-americana, que recorreu à Justiça. Mas o governo alegou que o cancelamento do contrato se deveu a problemas nos documentos apresentados pela Embraer e Sierra Nevada. Contrariado com o argumento, Schwartz disse que “sua reputação institucional corria risco” e acrescentou que seu pessoal vai “ralar” para descobrir o que há de errado na licitação e corrigi-la. E, se não houver nada além de um erro inocente, “haverá um alto preço a pagar”.

Schwartz disse que será “uma profunda decepção” se os fatos mostrarem que a Força Aérea estragou o contrato e expressou preocupação de que o cancelamento possa atrasar a entrega de uma aeronave vital para o exército afegão. “Uma das coisas com as quais estou mais triste — sem mencionar a vergonha que esse fato traz para nós como Força Aérea — é o fato de que estamos deixando nossos parceiros na mão aqui”, disse ele.

O cancelamento do contrato fortalece a França na disputa com norte-americanos e suecos para a venda do novo caça de múltiplo emprego à Força Aérea Brasileira (FAB). Esta é a avaliação interna feita hoje em alguns setores do governo que, embora tenham lamentado o episódio nos bastidores, evitaram comentar a decisão, alegando seu caráter puramente comercial. Segundo um graduado funcionário do governo, na questão dos caças, há pelo menos dois fatores a favor dos franceses: a maior previsibilidade e a promessa de compra de dez KC-390 produzidos pela indústria brasileira de aeronaves, com valor total estimado em US$ 1,2 bilhão, ou seja, mais do que os US$ 355 milhões perdidos pela Embraer nos EUA.

Segundo essa mesma fonte, a possível preferência pelo francês Rafale não seria uma retaliação contra os EUA no caso da Embraer. Mas o episódio é considerado como uma advertência às próprias autoridades brasileiras de que não é possível confiar plenamente no mercado norte-americano.

Subsecretário elogia o avião para minimizar o episódio

O subsecretário de Estado dos EUA, William Burns, disse na semana passada no Rio de Janeiro que seu governo “continua interessado” no avião Super Tucano da Embraer, apesar do cancelamento da concorrência de US$ 355 milhões da Força Aérea americana que havia sido vencida em dezembro pela companhia brasileira. Ele veio ao Brasil para preparar a visita da presidente Dilma Rousseff a Washington, em abril, e não quis entrar em detalhes das causas da anulação da licitação, oficialmente atribuída a problemas com a documentação entregue pela Embraer.

Burns reconheceu que “às vezes abusamos da paciência” dos outros, mas disse que espera que a disputa tenha novo desfecho o mais rápido possível e deu a entender que o Super Tucano continua no páreo. “A Embraer é uma grande empresa e o Super Tucano é um ótimo avião.” A Força Aérea dos EUA informou que pretende agir rapidamente para refazer a licitação por aviões de combate leve de uso no Afeganistão para garantir que o orçamento para a compra não expire no final de 2013.

Em um comunicado oficial, a Força Aérea declarou que, por uma medida “corretiva”, decidiu suspender o contrato com a Embraer, que entraria em vigor no dia 2 de março. O subsecretário, segunda autoridade mais importante na hierarquia da diplomacia americana, tentou desfazer qualquer relação entre o caso e a concorrência da FAB para a compra dos novos aviões caça, na qual o F-18, fabricado pela Boeing americana, é um dos concorrentes, ao lado do Rafale francês e do Gripen sueco.

Afirmou que a oferta de transferência tecnológica feita pelos EUA no caso de o Brasil optar pelo F-18 é “sem precedentes” e equivalente à oferecida pelos EUA a seus parceiros da Otan (aliança militar ocidental). “(A opção pelo F-18) pode abrir a porta para uma parceria de longo prazo entre os dois países na área de defesa.” Ainda não há decisão sobre qual será o fornecedor de 36 caças para a FAB — operação que custará aos cofres públicos algo entre US$ 4 bilhões e US$ 6,5 bilhões. A diretriz escolhida será conhecida neste ano, assegurou um técnico envolvido no assunto.

Segundo a mesma fonte, a possível preferência pelo francês Rafale não seria uma retaliação contra os EUA. Um documento interno mostra que os investimentos do Brasil nesta área tendem a despertar cada vez mais a cobiça dos parceiros internacionais. Existe uma projeção de que, em 2025, a FAB terá 1.200 caças de novas gerações para a defesa aérea do País, que atuarão com o apoio de aeronaves de inteligência de combate. Em comparação com os EUA, atualmente aquele país possui cerca de 2.400 aeronaves.

Burns negou que a concorrência tenha sido anulada por razões de política interna americana em ano eleitoral - houve pressões da fabricante norte-americana Hawker Beechcraft (HB), subsidiária da Lockheed Martin, desclassificada na licitação. “Não concordo com essa interpretação.” A HB fez intensa pressão política e jurídica sobre a administração Obama e a Força Aérea para impedir que o contrato caísse nas mãos da brasileira e da parceira norte-americana Sierra Nevada.

Apelando para o sentimento patriótico em meio à crise econômica, a HB argumenta que o contrato é fundamental para preservar 1.400 empregos norte-americanos. “Recebemos a notícia de que a Força Aérea vai restabelecer a Hawker Beechcraft na disputa”, disse a HB em um comunicado e criou site, página no Facebook e perfil no Twitter para convocar a população a escrever para os congressistas a fim de pressionar a Força Aérea a não “exportar empregos” para o Brasil.

Fonte: Jornal do Comércio