Em 15 de novembro de 1986, Saddam Hussein convocou seus principais assessores para uma importante reunião estratégica. Dois dias antes, o presidente americano Ronald Reagan tinha reconhecido num discurso televisionado que o seu governo tinha enviado armas e peças sobressalentes ao Irã.

Mas Saddam não pôde ser convencido a deixar de lado sua teoria conspiratória. Ele mencionou a venda de armas novamente no seu fatídico encontro com April Glaspie, então embaixadora americana em Bagdá, no dia 25 de julho de 1990, quando ele mais uma vez interpretou equivocadamente os recados de Washington, supondo que os EUA permaneceriam impassíveis quando o seu Exército invadisse o Kuwait na semana seguinte.

“Isso só pode ser uma conspiração contra o Iraque”, disse Saddam, que inferiu do episódio que os EUA estariam tentando prolongar a guerra entre Irã e Iraque, que já chegava ao seu sexto ano, e aumentar o já imenso número de baixas iraquianas.

Na verdade, o governo Reagan tinha preparado o envio de armas ao Irã por uma série de motivos que pouco tinham a ver com o Iraque: para obter a libertação de reféns americanos no Líbano, para abrir um canal particular de comunicação com os novos governantes de Teerã e para obter um lucro secreto que poderia ser usado para financiar os rebeldes que lutavam contra o governo da Nicarágua.

As deliberações dentro do círculo interno de Saddam são relatadas num volumoso arquivo contendo documentos e registros de reuniões capturado pelas forças americanas depois da invasão do Iraque em 2003. Boa parte deste material ainda não chegou ao domínio público. Mas uma pequena parcela do arquivo foi aberta aos pesquisadores independentes, e 20 transcrições e documentos seriam divulgados ontem por ocasião de uma conferência a respeito da guerra entre Irã e Iraque a ser realizada em Washington.

Mesmo na era do WikiLeaks, este tipo de registro detalhado das ruminações particulares de um líder estrangeiro – registro que revela os cálculos do líder e as impressões do seu governo em relação à política externa americana – raramente vem a público. Trata-se da versão iraquiana das fitas do Salão Oval que ajudaram a derrubar o presidente Richard M. Nixon e proporcionaram aos historiadores um vislumbre do funcionamento interno da Casa Branca de 1940 até 1973, período em que um sistema de gravação foi mantido na sede do governo.

No caso de Saddam, as transcrições revelam um líder inclinado a enxergar inimigos por toda parte, demonstrando muitas vezes um entendimento superficial da diplomacia fora do Oriente Médio. Um líder que nutria grandes ambições para o seu país, mas que era dado a épicos erros de cálculo.


Saddam subestimou o poderio do Exército iraniano a ponto de acreditar equivocadamente que os ataques aéreos iniciais do Irã tinham sido na verdade realizados por aviões israelenses. Ele escolheu pessoalmente os foguetes que seriam usados num ataque contra uma cidade iraniana. Gabava-se de que os iraquianos teriam um arsenal de armas químicas que “exterminava aos milhares”. Sentiu-se ameaçado pela ascensão da Irmandade Muçulmana e outros grupos fundamentalistas a ponto de debater seu desejo de “tapeá-los” e fazê-los pensar que o seu governo também promovia valores islâmicos. A partir de uma perspectiva histórica, a decisão de Saddam de enfrentar o Irã e sua reação ao caso Irã-Contras são dois dos assuntos mais intrigantes tratados nos documentos.

Saddam preparou o terreno para a guerra ao repudiar o acordo estabelecido em 1975 com o Irã. De acordo com Amatzia Baram, especialista israelense no Iraque, a decisão parece ter sido tomada numa reunião realizada em 16 de setembro de 1980, quando Saddam decidiu acreditar na otimista perspectiva de que os iranianos, temendo as forças iraquianas reunidas perto da fronteira, se renderiam sem oferecer muita resistência.

Fonte: Estadão - Via Plano Brasil